
TRABALHOS
Bestiário
As imagens apresentadas fazem parte de uma série que possui como temática um bestiário contemporâneo. Hoje, mais do que nunca, os modos de se experimentar o mundo passam por filtros potentes que modificam o agora. Tais filtro tem por função oferecer uma visão de mundo por vezes muito deturpada, firmada em crenças e não na experiência fenomenológica do estar no mundo. Deste modo, medos irracionais afloram, barreiras e muros crescem por todos as partes e passam a separar os considerados de dentro dos considerados de fora. O mundo torna-se binário, excludente com aqueles que não se encaixam, com aqueles que fogem a norma estabelecida. Os nacionalismos afloram pelo mundo inteiro, as democracias sufocam e com ela os ganhos civilizacionais também se vão. Tal modo de ser aparenta ter se adensado a partir do choque civilizacional provocado pelo COVID-19. Líderes totalitários e messiânicos surgem como maestros de uma multidão aparentemente acéfala necessitada de um Grande Pai. A irracionalidade e a tirania tomam a linha de frente e a adesão ao tirano torna-se um ponto de fuga mortal. Um suicídio moral coletivo tinge de vermelho o planeta. A Paixão e o desejo, o instinto de vida, são traídos e suplantando por Thánatos, morte. O canto da sereia aparentemente doce não o é, pelo contrário, é frio, sarcástico e calculista. A multidão delira. Pretendo com a série em vermelho, Bestiário, através de imagens banais do cotidiano de pessoas comuns, de fatos históricos inexplicáveis sobrepostos a outras imagens, sobretudo imagens de caráter religioso, mítico e místico, provocar um deslocamento do olhar, uma deriva do observador da imagem para chamar atenção para o agora e tentar provocar um desencaixe para quem sabe, reverter, mesmo que minimamente, o movimento entrópico que se acelera no planeta. Penso que vivemos um incomodo civilizacional.
Tudo dança, transmutação
A série fotográfica Tudo Dança, Transmutação trata de mulheres e do seu estar no mundo em que filtros de todas as ordens impedem uma visão clara do agora. Deste modo, medos irracionais afloram, barreiras e muros crescem por todos as partes e passam a separar os considerados de dentro dos considerados de fora. O mundo torna-se outra vez binário, excludente com aqueles que não se encaixam, que fogem a norma estabelecida. Tal modo de ser se adensou a partir do choque civilizacional provocado pelo COVID-19. As mulheres têm sido uma das maiores vítimas desse modo de ser. No Brasil, por exemplo, o número de feminicídios e agressões às mulheres cresceu significativamente. Tais mulheres são vítimas de uma sociedade doente, machista, egóica e destrutiva que não respeita as diferenças e não aceita a recusa do outro, principalmente das mulheres. Vivemos um incomodo civilizacional e a figura feminina neste contexto sofre injunções de todos os tipos. Todavia, daí também advém sua força. O vermelho que tinge as imagens é o sangue vertido pelas mulheres, seja o de sua feminilidade ou o sangue provocado pelo agressor. Essas imagens falam de um passado e de um presente que ainda oprime as mulheres de todas as etnias. Nesta série que apresento, os corpos muitas vezes mostram-se nus e lascivos numa afrontam as instituições machistas, formadas ao longo da história escrita pelos homens. Queimadas, açoitadas, abusadas durante séculos, neste trabalho as mulheres mostram os seus corpos, superfície carnal em disputa. Aparentam estar presas ao modelo que lhes foi outorgado pelo opressor, mas são livres e o vermelho é também a ira de Lilith contra seus algozes. Lilith foi a primeira mulher de Adão que, segundo a tradição, no ato sexual se recusou a ficar por baixo de Adão e exigiu os mesmos direitos que ele. As mulheres, nesta série, se afirmam e remetem, com alguma ironia, a uma história de submissão.
Tudo dança, transmutação
Essas imagens foram produzidas a partir de meu arquivo pessoal e imagens apropriadas de fotógrafos anônimos ou imagens de sites de venda de imagens da web. Trata-se de superposição de imagens filtradas em vermelho.
Informo que o meu modo de trabalhar em palimpsesto refere-se a uma inconformidade com a ideia de planicidade despertada pela imagem fotográfica no senso comum. A ideia é mostrar que as imagens não são unidimensionais como sugerem sua bidimensionalidade, mas possuem camadas, sentidos de quem as produz e de quem a elas se abrem. Penso que algumas imagens são como cristais e quando observadas se iluminam e oferecem uma miríade de entradas e vórtices desencadeadores de devir.
MINI BIO
Nasci na cidade do Rio de Janeiro, à meia-noite de um dia de maio em um ano qualquer do século XX. Atualmente moro e trabalho em Porto Alegre, cidade do Rio Grande do Sul, Brasil. Sou artista visual, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dessa forma, vivo a fotografia em tempo integral. Desde os anos 2000, venho produzindo e exibindo trabalhos relacionados à fotografia. Crio imagens que vão além da referência fotográfica, ampliando seu significado original. Meu ponto de partida no meu processo imagético pode ser tanto a fotografia analógica quanto a digital, ambas vinculadas às reflexões sobre o ser-no-mundo em nosso contemporâneo. O Humano é o centro de minhas reflexões. Em termos técnicos, minha produção fotográfica pode ser considerada híbrida. Regularmente escrevo artigos acadêmicos que refletem sobre o fotográfico.
Para falar mais sobre o meu ser artista, tomo as palavras do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade em seu Poema das Sete Faces. Eu diria que "quando eu nasci, um anjo torto como os que vivem na sombra disse: vai," Sandra! "seja gauche na vida". E é assim que me sinto. Tenho o contraditório como uma espécie de lema em minha vida. Não aceito o que já foi feito ou dito passivamente. Tenho a contestação como horizonte de reflexão sobre o mundo, sobre o humano, o demasiado humano, como diria Nietzsche. O que quero dizer com isso é que o que eu produzo, de alguma forma, está ligado a questões que me incomodam nos campos social, político e econômico, tanto do micro quanto do macrocosmo. Ao mesmo tempo, tenho uma alma barroca que caminha entre a luz e as trevas. O feio e o belo coabitam formalmente na minha arte. Através do meu trabalho procuro causar uma espécie de desconforto ou mesmo uma sedução, busco retirar o espectador, interessado, de sua zona de conforto. Acredito que as imagens que crio, à primeira vista belas, evocam sensações entre o prazer e a dor.
(informações retiradas do portfólio da artista)