




Unidade Funcional de uma Topografia da Intimidade
A experiência da reclusão, própria da maternidade, me levou à contemplação dos limites do habitável dentro do espaço doméstico. A princípio, eu admirava o movimento da luz, e sua sombra, sobre as arestas das paredes e teto. Somente a partir do registro visual e memorização desses espaços como instantes da casa, essa prática adquire traços de um tipo de “escavação íntima”, me permitindo reviver e entender melhor aqueles momentos de recolhimento
Abrigar-me nos cantos da casa surge da necessidade de habitar o intransponível; singular experiência que faz parte de um processo de transformação pessoal através da descoberta do canto como “... lugar habitável de recolhimento físico e mental que permite vivenciar, a partir do microcosmo que ali se encontra, impressões de intimidades possibilitadas por um
estado de solidão e silenciamento do pensamento” (BACHELARD, 1993).
A transposição desses cantos para o ambiente expositivo propõe revelar o espaço doméstico e seus acontecimentos “entre quatro paredes”. A distribuição espacial das telas não pretende seguir uma narrativa linear. Em minha pesquisa, o canto é o lugar das memórias vividas. Ao serem projetados no espaço, os cantos – agora móveis, nos remetem à uma espécie de encontro com uma dimensão do tempo onde o nada acontece.
Ao propagar as partículas da casa no espaço, e ao incliná-las sobre o espectador, busco expandir, em silêncio, os ruídos de uma memória invisível que emerge desses locais “inabitáveis”: cantos e paredes. A poética do espaço é o que permite que esta pesquisa investigue ideias subjetivas a partir de formas objetivas. Aqui, sob um modo de narrativa "quase" ausente, a presença dos cantos reflete um esquecimento de si, e do mundo, como condição de possibilidade para a realização do trabalho. É a pintura incorporando a espacialidade do mundo para compor uma interinidade plena.
Mahyrah Alves
Carta à mahyrah-mãe-pintora-artista
Meu último puerpério já há muito ficou para trás. Hoje sinto-me menos solitária que ontem.
Diante das imagens de sua Topografia da Intimidade, compreendo sua necessidade de, ao tomar como tema o período de seu pós-parto, desviar-se do campo de cor único, uniforme, inteiriço como uma superfície opaca ocupando o espaço real. O espaço da casa, como se diz amiúde, é o nosso canto no mundo. Sua função primordial é de abrigar o corpo.
Qual corpo? Qual gênero?
Também lhe parece uma nostalgia estritamente masculina? A casa tem, dizem, seus laços preconcebidos com a feminilidade: metonimicamente, devido ao presumido pertencimento da mulher ao espaço doméstico e seu papel indispensável e intransferível na manutenção do mesmo; metaforicamente, porque a domesticidade, a docilidade da “casa” é estruturada enquanto código por meio da nostalgia primordial do corpo materno/do útero e é garantida pela presença da mulher dentro da casa.
Abriga-te ou obriga-te?
Esvaziada por aquela solidão “descabida”, ao invés de plena, como que tomada por um milhão de corações batendo forte espalhados por todo o seu corpo maternal: você estava presa ao puerpério tão profundamente e o voo no sentido da verticalidade, para o canto no alto de seus aposentos era o modo de se desviar da condição de mulher-mãe-objeto.
Como não se perder nesse/desse ser-mulher-mãe, na/da figura ética de doação total do eu para o outro?
Foi, imagino, nesse sentido, que se concentrou nas velaturas, nos empastamentos em paleta de cor de brancos; nas passagens cuidadosamente/vigilantemente delimitadas entre o branco estável da tinta acrílica, o branco da tinta a óleo que se distingue amarelado pelo “cozimento” do tempo, e o mais frios de todos: o branco nascido da diluição em verniz incolor do pó de óxido de zinco
[o composto da pomada de Hipoglós?].
Refúgio: buscar equilíbrio assimétrico intuitivo entre os tons delicados dessa paleta de cor de leites para traçar os ângulos, para representações do canto, e criar, assim, a ilusão de espaço atrás do plano literal da tela; criar espaço onde se esconder da solidão terrível da maternidade, onde repousar da mistura paradoxal das dores e dos prazeres da relação filho-peito-objeto- mãe; para se desviar do espaço da [sua] casa, esse lugar de desequilíbrio da divisão sexual do trabalho sob o patriarcado.
Abrigo ou castigo?
Agora, diga-me com toda franqueza, minha amiga: seus brancos sobre brancos, seus cantos sobre cantos foram um esforço para criar um papel de parede todo seu?
texto de apresentação da exposição
Unidade Funcional de uma Topografia da Intimidade
Mahyrah Alves
Centro Cultural Câmara dos Deputados 13 de maio a 12 de junho de 2019
A tela de parede branca; o papel de parede branco; a pele branca da casa, dos quartos, dos incômodos.
Compreendo o desconforto que impulsionou seu labor: fazer arte aos poucos e aos pedaços entre as trocas de fraldas e as limpezas; pelos cantos; um quase silencioso protesto em reação ao isolamento doméstico e à exclusão do sistema artístico vivenciados por/pelo ser-mãe-artista com filho recém caído do ninho.
Diga-me: como pudemos algum dia, nós com corpos que abrigam úteros que se contraem nos impondo cólicas, [deixar-] nos encobrir com o ideal patriarcal da feminilidade e da domesticidade reconfortantes?
[Ao contrário,] A instalação que você determina para seus trabalhos- tridimensionais, suas unidades funcionais, situa o espectador/observador em uma revivência intrauterina “real”; não idealizada. Nessa versão particular/ peculiar para a morfologia da casa-útero, o miométrio é um tecido conjuntivo dividido em oito camadas-musculares-chassis de madeira não tão bem definidos pela forma retangular tradicional, na medida em que se metamorfoseiam em trompas-de-falópio-pantográficas a se afastar da parede em espécie
de hiperplasia e hipertrofia. Os cantos-telas-papéis-de-parede fazem as vezes do endométrio a avançar em violência sutil mirando o espectador/observador, sugerindo trajetória para o espremer.
Constringir ou constranger?
É falso: um espaço todo de cantos brancos/cubo branco, sem pormenorizar quaisquer aspectos pitorescos, sem quaisquer bordados, sem mesa de jantar e passadeiras de crochê, nem camas com colchas de macramê, criando uma casa vazia sutilmente assombrada pelo descontentamento feminista em face da artificialidade da codificação da casa como locus de proteção/segurança/ pertencimento. Dúvida: se você está ainda buscando aqui perturbar
o significado da casa ou se sugerindo encenação do espaço público da instituição da arte.
Mahyrah-mãe-pintora-artista, um segredo eu vou te contar: às vezes, eu me sinto tão desesperada; como estar enfaticamente sempre em fluxo? Como estar no lugar do outro e dentro de si mesmo, como cuidar do outro e de si mesmo?
Seria sonho um canto no mundo no qual maternidade está “livre de gênero”, está para além de um sinal de feminilidade codificada: liberdade no sentido de que não é identidade a ser assumida, mas trabalho ou prática, e, portanto, um conceito da ordem dos verbos e não dos substantivos e das nomeações?
Roberta Barros