E no mar estava escrita uma cidade
“Voltamos a viver na solidão,
prisioneiros de uma cidade estreita
e sem ventanas. Mas viveremos.”
Carlos Drummond de Andrade
Curioso reler Drummond em versos de outros tempos que mais parecem mensagens lançadas em garrafas ao mar e que acabam de chegar trazendo notícias não de então, mas do que nos aguarda. Aparenta antever esses dias que vivemos espremidos ante algo que se ergue e acena como retorno à uma matéria escura sobre a qual perdemos o domínio. A indignação e a tristeza do poeta são ainda hoje nossas também, nós que olhamos uma cidade imersa na fantasia de uma beleza que inventamos ou parodiamos, questões ideológicas entrelaçadas à crença de que a rosa do povo floresça, que essa época de consternação e individualismo seja abolida.
Convidados a falar sobre o urbano, os dez artistas reunidos nesta mostra apresentam lugares revistos, revisitados, imaginados, olhares de referência, de memória, de afeto, outros ares. Contudo, vemos aqui e ali a sobrecarga doída que jaz nas imagens trazidas à tona por quem anda pelas ruas e observa apenas vestígios de uma escrita que enaltecia a cidade, vê ondas apagarem e levarem embora construções de sonhos. A mesma amargura que sentimos ao testemunharmos o descaso público, a inépcia estatal, em suma, o absurdo da vida em meio ao caos social. Esses artistas não estão imunes a toda dor, pelo contrário, são o nervo sensível que exterioriza o grito, e ele explode sobre o oceano, quer decifrar o céu noturno que cobriu a metrópole.
O que haverá para se ponderar na balança histórico-cultural deste tempo em décadas que ainda virão os artistas estão sempre a postos sinalizando e chamando nossa atenção. São eles que esmiúçam em seus trabalhos reflexões necessárias e contundentes, engajados que estão por se manterem alertas em seu campo poético-político (todo ato é político, toda tomada de posição é política).
E no mar estava escrita uma cidade, título que tomo de empréstimo de um verso de Drummond, poderia ser parafraseado e se tornar rio, montanha, campo, qualquer lugar a que as pernas pudessem levar e chegar. A exposição traz consigo esse desejo múltiplo de ser mais que as aparências, mais do que seu aspecto formal, quer ser possibilidade, apontar alternativas, sem medo de dobrar a esquina, atravessar o cruzamento, é preciso o gesto tanto quanto o senso. Há de se doer, de se dar, de se amar pelo caminho, mas viveremos. E a arte será a nau que gira o mundo e renova a esperança.
Osvaldo Carvalho